terça-feira, 30 de novembro de 2010

PLANTAS MÁGICAS

clips do livro de Sangirardi Jr. " Os índios e as plantas alucinógenas "

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A palavra droga tem, hoje em dia, uma carga semântica negativa, de condenação, medo, curiosidade mórbida. Droga em grego é pharmakon , quer dizer remédio, medicamento, mas também é veneno. É o nome dado a Platão à bebida que matou Sócrates.

Em inglês o termo drug é o termo que serve tanto para remédio como para veneno. A Organização Mundial de saúde definiu : " Dependência de droga é o uso habitual e compulsivo de qualquer droga narcórtica, de maneira que ameace a segurança e o bem-estar do próprio dependente ou de terceiros. " Narcótico, é um termo genérico, que designa substância que produz estupor ou letargia e pode, inclusive, aliviar ou suprimir a dor.

O Bulletin on Narcotics, editado pelas Nações Unidas, já publicou inúmeros trabalhos sobre o hábito de mascar folhas de coca, o qual, além de não levar à narcose, tem efeito justamente oposto, o de eliminar sono e cansaço. Já o álcool, que pode até provocar sono comatoso, jamais foi chamado de narcótico, pois é uma das drogas sacramentadas pela civilização ocidental.

Para aumentar a confusão, entra em cena a palavra tóxico, que significa veneno, mas que adquiriu um sentido tão amplo quanto da palavra narcótico. Droga e tóxico passaram a ser palavras irmãs. Maconha é sinônimo de horror e delinqüência; cigarro de elegância e bom gosto ( hoje em dia já mudamos isso, ainda bem !).

Os meio de comunicação noticiam com destaque a prisão de maconheiros; mas veiculam insidiosas propagandas de cigarros e álcool. A sociedade combate a maconha como se fosse uma " erva maldita " e pune o seu uso. Mas permite que seja anunciada amplamente as bebidas alcoólicas. Não é um aguardente que o povo bebe, mas produtos falsificados pela ganância, na alquimia de fabricantes. A cachaça tem ação devastadora na saúde dos subalimento bóias frias, colonos de fazendas, operários de fábricas. E os alcoólatras se multiplicam na fermentação da miséria. Os ébrios apodrecem em vida nas sarjetas das grandes cidades.

Por que os que se empenham em combater tóxicos não começam pelos mais graves ? Basta olhar à volta, para constatar a gigantesca quantidade de tóxicos que ameaçam a saúde e a vida de nosso povo, em terra, nas águas, no ar.

Em terra, tóxicos oriundos de detritos, resíduos, podridões - a semeadura de imundices feita pela ganância do homem "civilizado" . Nos alimentos, tóxicos provenientes de substâncias químicas, produtos de conservação, defensivos agrícolas (agrotóxicos), toda uma tecnologia a serviço do lucro, através da adulteração e da fraude.

Rios, mares e lagos estão morrendo sob ação de tóxicos oriundos de esgotos, resíduos industriais, lixo, enfim, os restos pestilentos da civilização. Os ares estão envenenados pelos tóxicos de emanações deletérias, incluindo a fumaça das chaminés das fábricas e dos veículos motorizados.

Derrubam florestas e plantam dinheiro. A especulação imobiliária devasta e desumaniza. Aniquila-se a flora e a fauna, de norte a sul do país. Conseqüência : alternam-se, com intensidade crescente, secas flagelantes,e inundações diluviais. É a guerra total contra a ecologia. Seus comandantes decretaram a morte do índio - o homem da terra - enquanto desenvolvem a estratégia do "progresso", cujas ações táticas multiplicam os tóxicos.

Missões salesianas no vale do Rio Negro, impunham, através de missionários a abolição de plantas de poder ( alucinógenos) consumidos ritualmente em cerimônias tradicionais. Abolir essas plantas é destruir a religião, pois impossibilita as práticas xamanísticas e impede que o índio se comunique diretamente com a divindade. Destruir a religião é um complexo cultural de importância básica, inclusive como fator de união tribal e intertribal. E o aniquilamento desse complexo vem ajudar o domínio do silvícola pelo homem branco.

O complexo das drogas é determinado pelo complexo cultural. Entre os maometanos o álcool é abominável e a maconha (haxixe), tranquilamente permitida. Entre nós a maconha é execrada e o álcool é amplamente institucionalizado.

Para o branco a droga fragmenta a personalidade : é um vício e um processo de fuga. Para o índio, a droga provoca uma comunhão com a divindade e a volta às mais profundas raízes ancestrais; é um processo de integração.

A rapidez e a amplitude da difusão das drogas entre os brancos teve como causa principal a ambição do lucro, que o índio desconhece. Em todas as nações indígenas, as drogas são sagradas, oriundas dos vegetais hierobotânicos. E o seu consumo é sempre cerimonial, em ritos determinados por tradição milenar.

O médico feiticeiro indígena, revelou ao homem branco importantes descobertas no reino vegetal, como as plantas de poder, que ampliaram e aprofundaram o campo das pesquisas em psicologia e psiquiatria.

O pajé, xamã ou medicine man tem a autoridade de quem conhece o efeito das plantas. E conhece porque também consumiu e consome as plantas que ministra. O mesmo tipo de conhecimento foi adquirido, modernamente, por notáveis cientístas, que fizeram auto-experiência.

O homem quer erguer-se da lama da terra. E alcançar as estrelas. E entrar em contato com seus deuses. Recorre então as ervas do sonho. A posse de plantas mágicas vem de muitos séculos, através de gerações. É legado de pioneiros que desbravaram o desconhecido. Os que ingeriram pela primeira vez cascas de árvores, folhas, flores, frutos, sementes, raízes - puros, triturados em infusões, para que se aprendesse a distinguir as espécies e quais as partes dos vegetais com poderes psicoativos.

Cada planta mágica abriga um espírito, cuja força o índio absorve, ingerindo o vegetal ou uma de suas partes. Essa força propicia o sono divinatório, as imagens (visões), o mistério das visões, a presença dos mortos, as revelações dos espíritos, enfim, o contato com o sobrenatural. Essa forca é o mana dos polinésios e dos antropólogos. É também o pneuma do Velho Testamento - sopro, vida, Espírito Santo.

Para o índio, um princípio inteligente habita o reino vegetal. Está presente em cada espécie. Esta crença está cientificamente comprovada. Toda a planta psicoativa é sagrada. E toda a planta sagrada só é consumida ritualmente.

PLANTAS QUE CURAM

A antropóloga Beatriz Caiuby Labate é uma voz altiva e ativa no universo da pesquisa acadêmica brasileira sobre o uso das plantas de poder e, em especial, da ayahuasca (1). Aos 33 anos, Bia Labate já trilhou boa parte do vasto território-alvo de sua pesquisa e, literalmente, colocou o pé na estrada, nos últimos nove anos, viajando pelo Brasil, Peru, Colômbia, México e África.

Suas andanças, em busca da gênese e da história de distintas culturas e agrupamentos que fazem uso tradicional ou contemporâneo das plantas psicoativas, lhe renderam a co-organização do livro O Uso Ritual da Ayahuasca (Mercado de Letras, 2002), onde conseguiu reunir, numa edição virtuosa, a palavra de xamãs, vegetalistas, etnólogos, cientistas sociais e psiconautas (pesquisadores empíricos e científicos de psicoativos), tornando-se referência no campo de estudos sobre as religiosidades urbanas contemporâneas e o psicodelismo.

Seu mais recente livro, A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos (também editado pelo Mercado de Letras, 2004), recebeu o prêmio de melhor trabalho de mestrado, em 2000, pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais – ANPOCS

Plantas que Curam - Bia Labate

As plantas psicoativas têm sido utilizadas há cinqüenta mil anos pela humanidade, em diferentes culturas e épocas, sendo objeto de culto e reverência ou de demonização. A paixão que despertam revela-se, em primeiro lugar, pela própria maneira de nomeá-las. Alguns pesquisadores têm criticado o termo científico alucinógeno, por sugerir uma percepção falsa e ilusória da realidade. Uma opção adotada tem sido enteógeno, originário do grego antigo, com o significado de “Deus dentro” ou “o que leva o divino para dentro de si”. Outra, mais ligada à contracultura, é psicodélico, “aquilo que revela o espírito ou alma”. Alguns preferem utilizar termos nativos, como é o caso de plantas professoras, expressão característica do vegetalismo peruano, ou adotar denominações que sublinhem as dimensões neurofarmacológicas comuns às várias substâncias, como a proposta por Michael Winkelman, plantas psicointegradoras, aquelas que “integram os hemisférios direito e esquerdo do cérebro”.

As diversas populações que fazem uso dessas substâncias consideram, em geral, que elas são habitadas por um espírito, uma “mãe”, um “dono” — com o qual podemos nos comunicar e aprender. Elas seriam, portanto, um espírito-planta. Um traço comum aos variados contextos é a crença de que, por meio dessas substâncias, é possível estabelecer contato com o mundo espiritual, com os seres divinos, e transcender as fronteiras da morte. Historicamente, o uso de tais psicoativos tem sido associado ao reforço da identidade étnica, à promoção da coesão social, à transmissão de valores culturais, à produção artística, à morte simbólica do ego, ao autoconhecimento, à resolução de conflitos sociais, à guerra, à feitiçaria, à caça, ao poder político e cósmico, à metamorfose em animais e à divinação, entre outros.

Uma das dimensões centrais das plantas de poder é a sua conexão estreita com os sistemas de cura, seja através da figura do xamã, seja através das religiões institucionalizadas. A cura propiciaria uma conexão holística entre processos mentais, emocionais e espirituais — mesmo porque, em alguns dos contextos onde estas substâncias são consumidas, tais esferas são consideradas inseparáveis. A ciência norte-americana dos anos 50 e 60 desenvolveu diversas pesquisas e experimentações sobre as virtudes médicas e terapêuticas dos psicoativos, sobretudo antes da proibição legal do LSD nos EUA, em 1966. Entretanto, o tema permanece ainda pouco estudado, além de fortemente estigmatizado.

Os assim chamados estados alterados de consciência não são provocados apenas por substâncias químicas. Eles também podem ser produzidos por estímulos auditivos, jejuns nutricionais, isolamento social e deprivação sensorial, meditação, estados de sono, abstinência sexual, comportamento motor intensivo, opiáceos endógenos e estados mentais resultantes de alterações na neurofisiologia ou química corporal. Vamos nos deter aqui sobre duas plantas que têm sido usada ritualmente, na África e na América do Sul, como formas de transe e cura, a iboga e a ayahuasca, tentando compreender os seus múltiplos contextos de uso e aplicações.

Tabernanthe iboga

Trata-se de um arbusto com uma raiz subterrânea que chega a atingir 1,50m de altura, pertencente ao gênero Tabernanthe, composto por várias espécies. A que mais tem interessado a medicina ocidental é a Tabernanthe iboga, encontrada nos Camarões, Gabão, República Central Africana, Congo, República Democrática do Congo, Angola e Guiné Equatorial. Seu principal alcalóide é a ibogaína, extraída da casca da raiz.

Algumas espécies animais, entre as quais os mandris e os javalis, alimentam-se das raízes da iboga para conseguir efeitos entorpecentes. Imagina-se que os pigmeus descobriram a eboka (iboga) observando o comportamento desses animais. Até hoje, estas populações utilizam a iboga em seus ritos.

Em 1901, a ibogaína foi isolada pela primeira vez. Há notícia de que ela teria sido usada no Ocidente desde o início do século XX, no tratamento de gripe, neurastemia, doenças infecciosas e relacionadas ao sono.

Em 1962, Howard Lotsof, um jovem dependente de heroína, acabou descobrindo, por acaso, a iboga na África. Após uma viagem astral de 36 horas, relatou que perdeu o desejo de consumir heroína por completo. Em 1983, Lostsof relatou as propriedades antiaditivas da ibogaína e em 1985 obteve quatro patentes nos EUA para o tratamento de dependências de ópio, cocaína, anfetamina, etanol e nicotina. Fundou o International Coalition for Addicts Self Help e desenvolveu o método Endabuse, uma farmacoterapia experimental que faz uso da ibogaíne HCl, a forma solúvel da ibogaína. Através da administração de uma única dose, cujo efeito dura dois dias, haveria uma atenuação severa dos sintomas de abstinência e uma perda do desejo de consumir drogas por um período mais ou menos longo de tempo.

Atualmente, a iboga é utilizada por curandeiros tradicionais dos países da bacia do Congo e na religião do Buiti na Guiné Equatorial, Camarões e, sobretudo, no Gabão, onde membros importantes das hierarquias políticas do país são adeptos do culto. Aproveita-se principalmente a casca da raiz mas também se atribuem propriedades medicinais às folhas, à casca do tronco e à raiz. No Gabão, a raiz e a casca da raiz são encontradas facilmente nas farmácias tradicionais e nos mercados das principais cidades. A iboga pode ser utilizada sozinha ou em combinação com outras plantas — uma parte desse conhecimento permanece secreto. Segundo depoimentos que colhi nos Camarões em 2001, ela é empregada no tratamento da depressão, da picada de cobra, da impotência masculina, da esterilidade feminina, da AIDS e também como estimulante e afrodisíaco. De acordo com as crenças locais, seria eficaz, ainda, sobre as doenças místicas, como é o caso da possessão.

Existem dois tipos de Buiti: o tradicional, que rejeita o cristianismo, e o sincrético, o mais difundido. O primeiro é praticado pelos Mitsogho e o segundo pelos Fang, ambos grupos Bantu. É provável que durante o século XIX os pigmeus tenham transmitido seus conhecimentos aos Apindji, que os teriam passado, por sua vez, aos Mitsogho, ambas populações do sul do Gabão. Esses grupos elaboraram durante o século XIX um culto dos mortos, o Buiti tradicional. O Buiti sincrético ou Fang foi formado por ocasião da primeira guerra mundial. Ele é produto de influências do Buiti tradicional, do culto ancestral, característico dos Fang, o Bieri (que utiliza uma outra planta psicoativa) e da evangelização cristã. Existe, ainda, um outro culto que utiliza a iboga, o Abri, até hoje pouco investigado. Esse último é comandado por mulheres e dedica- se ao tratamento de doenças por meio da iboga e de outros vegetais medicinais.

A religião buitista contempla um rito de iniciação que dura três dias. Na abertura, o candidato confessa seus pecados e toma um banho ritual. Ele passa, então, a ingerir, em jejum, uma enorme quantidade de iboga (pode chegar a 500g) e de ossoup, uma espécie de chá frio feito com a raiz da planta. O grupo acompanha o neófito durante a prière, onde todos cantam, tocam e dançam noite a dentro.

A iniciação tem como objetivo produzir um suposto coma induzido — os estudiosos ainda não conseguiram defini-lo com precisão. De acordo com os adeptos, em algum momento o espírito sai do corpo e viaja para o plano da criação. Podem-se receber revelações, curas de enfermidades ou comunicar-se com os ancestrais. A citar (harpa sagrada) orienta a viagem e traz o espírito de volta. Terminada a cerimônia, o indivíduo — renascido com uma nova identidade, bandzi, 'aquele que comeu' – deve relatar suas visões ao grupo.

Podem ocorrer mortes nos rituais de iniciação do Buiti. Segundo os líderes, isto pode acontecer devido a diversos fatores, como a incompetência do guerriseur, a administração da planta a um doente muito debilitado ou, ainda, pelo fato de o paciente ser um bruxo. Os Fang conhecem uma folha-antídoto (Ebebing) que anula o efeito da iboga.

A literatura científica sobre o tema é controversa. Sabe-se que a ibogaína produz perda do equilíbrio corporal, tremores, aumento da temperatura corpórea, da pressão e da freqüência cardíaca. Estudos com ratos e primatas demonstraram que a ibogaína em quantidade de 100 mg/kg é neurotóxica (a dose utilizada no tratamento de Lotsof é normalmente de 25 mg/kg). Ela é diferente de outros medicamentos, na medida em que é a única substância conhecida que age diretamente sobre o suposto mecanismo da dependência no corpo humano. Entretanto, não se conhece ao certo seu grau de eficácia e não existe nenhum estudo científico que comprove que a ibogaína cure a dependência química; há apenas evidências anedóticas.

Os tratamentos com ibogaína não são autorizados nos Estados Unidos, Reino Unido, França ou Suíça. Mesmo assim, têm sido adotados clandestinamente. No Panamá, a instituição liderada por Lotsof cobra 15 mil dólares; na Itália, o custo é de 2.500 dólares, e, nos EUA, o tratamento varia entre 500 e 2.500 dólares. Em Israel, a iboga está sendo pesquisada para uso no tratamento da síndrome de pós-guerra que afeta os soldados.

De acordo com o médico italiano Antonio Bianchi, a ibogaína age sobre uma enorme quantidade de receptores neuronais. Sua característica fundamental é sua ação sobre a NMDA (N-metil-D-aspartate). Esses receptores estão presentes sobretudo em duas áreas: o hipocampo, que controla a memória e as recordações, e a sensibilidade proprioceptiva, parte responsável pela sensação que temos do nosso corpo físico. Se esses receptores forem bloqueados, a pessoa construirá uma imagem do “eu” que não está relacionada com o eu físico, ou seja, sentir-se-á fora do corpo. Este seria o mecanismo neurofisiológico da viagem astral, o ponto de encontro entre as concepções religiosas e as científicas. Nessas condições, o homem tende a construir aquilo que é definido como uma bird-eye image, assumindo uma projeção de si mesmo a partir de uma posição do alto — experiência também recorrente nos relatos da ayahuasca.

Banisteriopsis caapi

o xamanismo indígena e o vegetalismo

A palavra ayahuasca pertence à língua quéchua. De acordo com estudiosos, "Aya" quer dizer dead person, soul, spirit e "Waska" significa cord, liana, vine. Assim, poder-se-ia traduzir ayahuasca em português como corda (liana, cipó) dos mortos (da alma, dos espíritos). A ayahuasca geralmente consiste na infusão do cipó Banisteriopsis caapi e do arbusto Psychotria viridis. Podem-se acrescentar mais de trinta outras espécies ao cipó, como a folha de outro cipó, Diplopterys cabrerana, conhecida na Colômbia como chagro panga.

O arbusto Psychotria viridis contém um princípio ativo, a DMT (N, N, Dimetiltriptamina), que tem semelhança estrutural com a serotonina, um importante neurotransmissor do sistema nervoso central. Quando administrada por via oral, a DMT é decomposta pela monoaminoxidase (MAO), tornando-se inativa. O cipó contém alcalóides beta-carbolinas: a Harmina, a Harmalina e a Tetrahidroharmina. Esses alcalóides inibem a atuação da enzima de MAO, o que evita que esta inative a DMT contida na folha. Assim, a interação entre esses alcalóides e a DMT permite que a bebida produza alterações no corpo.

Cerca de setenta grupos indígenas fazem uso da ayahuasca na Amazônia Ocidental, geralmente associado ao xamanismo. A bebida possui um papel central na organização social e simbólica dessas populações. Em muitos casos, o mito de origem da ayahuasca ou yagé é o mesmo que narra o aparecimento daquele determinado grupo étnico na Terra. Durante a experiência, os participantes revivem cenas mitológicas que confirmam suas crenças e introjetam valores e comportamentos socialmente sancionados. A experiência ayahuasqueira está ligada também ao destino post-mortem.

O consumo indígena do cipó tem a ver com várias dimensões da vida social — aqui nos interessa, em particular, os seus usos medicinais, como o diagnóstico e a cura de doenças. No Peru, a bebida é conhecida também como la purga, devido às suas características de desintoxicação; em certas regiões da Colômbia, é denominada el remedio. Estudiosos levantam hipóteses de que o chá contenha propriedades eméticas, antimicrobianas e anti-helmínticas, o que o tornaria efetivo no combate a vermes ascáridos e protozoários. Os praticantes afirmam que a ayahuasca é útil no combate a males naturais e mágicos.

Generalizando aspectos comuns aos vários contextos indígenas, podemos afirmar que o xamã localiza, durante o transe, através de suas visões, o mal que causa a doença e/ou o responsável por ela (no caso da feitiçaria). Ele combate espíritos malignos, captura a alma do doente de volta e, por meio da sucção, retira o objeto patogênico. Dependendo do contexto, apenas o xamã toma a bebida, ou ambos, curandeiro e paciente, comungam da mesma. O tabaco é altamente estimado e, geralmente, acompanha as sessões de cura. É considerado purificador do corpo e comida dos espíritos. Outras plantas podem ser usadas, dependendo do problema.

A explicação antropológica convencional postula que o xamanismo medicinal indígena foi transportado para as populações das pequenas cidades na orla da selva, adaptando-se ao contexto de urbanização. Porém, autores como Peter Gow têm sugerido que o xamanismo ayahuasqueiro ligado à cura, tal como o conhecemos hoje, seria, de fato, freqüentemente, uma importação da cidade para a floresta, sendo menos significativo nas zonas mais marginais ao processo de contato colonial no espaço do capitalismo internacional da borracha.

O autor se refere a outra modalidade de consumo do cipó, o vegetalismo, praticada sobretudo por populações mestiças. Este fenômeno foi estudado pelo antropólogo Luis Eduardo Luna — trata-se de uma forma de medicina popular à base de vegetais, cantos e dietas. Os vegetalistas são curadores das populações rurais do Peru e da Colômbia que mantêm elementos dos antigos conhecimentos indígenas sobre as plantas, ao mesmo tempo em que absorvem influências do esoterismo europeu e do meio urbano. São procurados para sanarem problemas emocionais, físicos, psicológicos e somáticos, vícios, má sorte, questões amorosas, susto (medo que gera a perda da alma), daño (ataque prejudicial de terceiros) e mal de ojo (inveja), entre outros. Os pacientes não se envolvem necessariamente com as atividades do curandero — apenas alguns se dedicam ao aprendizado.

A iniciação do vegetalista é marcada por uma série de rígidas restrições alimentares e abstinência sexual, além da ingestão de uma boa quantidade de plantas psicoativas — a idéia é que o aprendiz adquire no próprio corpo a força das plantas que ingeriu nos períodos de dieta, absorvendo os espíritos dessas plantas e contatando outros espíritos protetores, os quais devem ser respeitados, pois geralmente são muito ciumentos. Durante esse processo, ele aprende os icaros — melodias ou cantos mágicos que os espíritos das plantas lhe ensinam e que representam a essência de seu poder. O ícaro possui relação estreita com o conteúdo das visões experienciadas e tem diversas propriedades, entre elas a capacidade de transportar para o vegetalista qualidades da planta evocada, curar ou prejudicar pessoas. Os curandeiros afirmam que a ayahuasca lhes ensina os idiomas indígenas dos cantos que cantam.

Uma das principais ferramentas do vegetalista é o arkana, uma espécie de armadura mágica que o protege. Outra dádiva recebida dos espíritos é uma substância chamada yachay ou mariri, secreções que o vegetalista armazena no seu corpo. Ele fuma ou traga o tabaco para regurgitar esta gosma grossa, que o auxilia a extrair objetos enviados por feiticeiros rivais, posteriormente cuspidos. Outra arma de defesa e ataque são os virotes, setas mágicas com formas variadas (de espinhos, insetos, penas, ossos) que ficam alojadas atrás do pescoço ou na espinha vertebral do praticante e podem ser enviadas a distância.

As sessões são à noite e duram várias horas. O vegetalista utiliza, além dos cantos, assobios, perfumes, uma schacapa (uma espécie de maracá feito com folhas), mapachos (cigarros de tabaco) e, eventualmente, orações — no caso dos curandeiros mais urbanos, há presença de imagens de santos, além das personagens que normalmente habitam o seu imaginário, como o chullachaki e o yakuruna. Apesar dos vegetalistas serem altamente individualistas e de haver diversas modalidades de praticantes, existe, não obstante, uma rede informal de relações que inclui a transmissão de conhecimentos ou o ataque sobrenatural.

As religiões ayahuasqueiras brasileiras

o caso do Santo Daime

Embora na Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela e Equador haja uma tradição de consumo da ayahuasca por xamãs e vegetalistas, curiosamente é somente no Brasil que se desenvolvem religiões que fazem uso da bebida, religiões essas formadas por populações não indígenas. A exemplo dos casos do Buiti africano e da Native American Church no México e nos EUA (que faz uso do peiote), as religiões ayahuasqueiras brasileiras reelaboram os antigos sistemas de conhecimento locais a partir de uma leitura cristã.. O Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal são herdeiros das práticas de consumo da ayahuasca pelo curandeirismo amazônico e são influenciadas, além do catolicismo popular, pelas tradições afro-brasileira, espírita kardecista, esotérica de origem européia (por meio do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento e do movimento Rosa Cruz), bem como pela religiosidade popular nordestina.

Na década de 30, Raimundo Irineu Serra fundou a religião do Santo Daime em Rio Branco (Acre), a vertente conhecida como Alto Santo; em 1945, Daniel Pereira de Mattos criou a Barquinha no mesmo estado; na década de 60, formou-se a União do Vegetal (UDV) em Porto Velho (Rondônia), através de José Gabriel da Costa. Na década de 70, apareceu o CEFLURIS, outra ramificação do Santo Daime, liderada por Sebastião Mota de Melo. A partir do final dos anos 70, a vertente daimista ligada ao Padrinho Sebastião e a UDV começaram a se expandir pelos centros urbanos brasileiros e, nos anos 90, pelo exterior. O Santo Daime possui núcleos no Japão, na Holanda, na França, na Itália e nos Estados Unidos, entre outros. Contam-se hoje por volta de 11 mil pessoas ligadas às religiões ayahuasqueiras.

A legalidade do uso da ayahuasca foi colocada em questão durante os anos de 1985 a 1987, quando a beberagem foi incluída na lista das substâncias proscritas da Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde brasileiro. Foi formada uma comissão multidisciplinar que, durante dois anos, estudou as formas de consumo do psicoativo. Como resultado, o (extinto) Conselho Federal de Entorpecentes elaborou um parecer positivo, retirando a substância da ilegalidade. Em 1992, houve uma nova tentativa de proibição, tendo sido organizada uma nova comitiva, que reafirmou as decisões da anterior.

O Santo Daime preserva o caráter sagrado da festa e da dança, oriundo do catolicismo popular. Convivem no seu panteão mítico Deus, Jesus, a Virgem Maria, os santos católicos, entidades originárias do universo afro-brasileiro e seres da natureza. Também são louvadas as figuras do Mestre Irineu, identificado com Jesus Cristo, e do Padrinho Sebastião, “encarnação de São João Batista” — de onde são derivadas algumas concepções messiânicas e apocalípticas. Do espiritismo kardecista são reelaboradas noções como as de carma e reencarnação. Os indivíduos possuem dentro de si elementos de uma “memória divina”; ao mesmo tempo, podem, através do próprio comportamento, alterar seu “carma”, “evoluindo espiritualmente” em direção a sua “salvação”. Em consonância com os sistemas xamânicos, verifica-se a existência de uma “guerra mística” entre os homens e os seres espirituais. Os daimistas são concebidos como os “soldados do Exército de Juramidam”, empenhados numa “batalha astral” para “doutrinar” os “espíritos sem luz”. Todo o ritual está permeado por um espírito militar com ênfase na ordem, na disciplina etc.

A cerimônia consiste no entoar coletivo de hinos, considerados “revelações do Astral”. Os trabalhos espirituais realizados pelos daimistas são de concentração (com períodos de meditação) ou bailado (execução de uma coreografia simples), podendo chegar a produzir um verdadeiro êxtase coletivo. Há também trabalhos de missa (para os mortos) e rituais de fardamento (momento em que o indivíduo adere oficialmente ao grupo, passando a usar suas vestimentas). Recentemente, vem ganhando força alguns ritos onde ocorre incorporação de espíritos, produto das influências crescentes da umbanda nesta instituição.

Um outro ritual é o feitio do daime (ayahuasca), que consiste no processo de cocção das plantas que compõem a bebida. As mulheres limpam as folhas e os homens maceram o cipó manualmente com marretas de madeira, o que envolve bastante esforço físico. O feitio é concebido como um processo através do qual a bebida é preparada e, simultaneamente, o adepto se aperfeiçoa. Costuma-se afirmar que “é o daime que produz o daime”. Durante o feitio, consomem-se altas quantidades da substância.

Há, ainda, diversos tipos de trabalhos de cura. Para os daimistas, a doença é compreendida como tendo suas raízes em transgressões a leis que governam o mundo social, localizadas na realidade espiritual: a cura significaria a reinserção individual numa ordem social e cósmica. Isto quer dizer que a doença espiritual e a doença física seriam simplesmente graus diferentes de uma mesma experiência de desequilíbrio. Os rituais possuem a função de descobrir as causas espirituais da aflição e o daime é o seu veículo de transformação.

Uma das formas através da qual a cura se dá é por meio dos vômitos e diarréias causados pela bebida, compreendidos como uma purificação necessária do corpo. Neste sentido, o Santo Daime aproxima-se da tradição indígena e vegetalista de consumo da ayahuasca. No Santo Daime, entretanto, o vômito é revestido também de um conteúdo moral, ligado ao comportamento do indivíduo. E existe uma ênfase muito menor na cura de males físicos: os daimistas não são médicos, como os vegetalistas, embora a dimensão mais estritamente medicinal também esteja presente, revestida de conteúdo religioso.

Às vezes, pode ocorrer, associada à limpeza (vômitos), uma experiência de intenso sofrimento: a peia, uma surra do daime. A peia está associada também a outros processos fisiológicos incômodos ou aparece, ainda, sob forma de pensamentos ou sensações. Apesar de extremamente desagradável — incluindo visões aterradoras de monstros, vermes, trevas, sensação de morte ou medo intenso, enfim, toda classe de tormentos conhecidos ou não — a peia produziria efeitos benéficos, didáticos e transformadores.

Neoxamanismo Urbano

Atualmente vários jovens do primeiro mundo têm viajado ao Peru e à Colômbia para terem experiências com a ayahuasca; alguns franceses têm procurado programas especiais, na África, que reproduzem a iniciação do culto da iboga. Novos especialistas estão surgindo: neocurandeiros de origem indígena ou mestiça que se globalizam e neoxamãs brancos que passam a se dedicar às artes nativas. Existe uma graduação nas práticas oferecidas, que vão desde as especialmente forjadas para o turista, até outras bastante próximas dos contextos regionais, compostas por vários dias de isolamento, jejum e consumo contínuo de psicoativos. Há também estrangeiros que viajam em busca de cura para problemas de saúde, artistas que almejam desenvolver sua criatividade e pesquisadores interessados no xamansimo.

Seria um equívoco, portanto, reduzir todas estas atividades em torno das plantas visionárias a uma só modalidade; porém, uma têm se destacado: o neoxamanismo urbano. Trata-se de uma porção do movimento Nova Era que faz releituras específicas das tradições xamânicas ao redor do globo, elaborando uma espécie de "xamanismo universal", muitas vezes com cunho cristão. Esta recriação fundamenta-se na apropriação livre que os líderes fazem da literatura antropológica e das publicações esotéricas sobre o universo indígena.

O neoxamanismo é controverso. Ele tem sido criticado por tentar criar uma religião ameríndia única, homogênea, abstrata e idealizada por meio da não-referência às comunidades e etnias e, sobretudo, da falta de contato com os aspectos obscuros e conflitantes presentes no xamanismo — como a morte, a guerra, a violência e a ausência de uma distinção moral nítida entre “bem” e “mal”. Mas, por outro lado, pode-se argumentar que tais práticas são uma forma de colocar os ocidentais de classe média em contato com tradições autóctones, milenares, despertando-os para outras sensibilidades, modos de vida, visões de mundo etc.

É muito difícil, num mundo marcado pelo embaralhamento das fronteiras entre “representação” e “realidade”, distinguir práticas “autênticas” de “não autênticas”. Podemos, porém, sugerir algumas características que, em geral, só estão presentes em um “verdadeiro xamã”: ele não faz autopropaganda; o seu reconhecimento emana da comunidade; existe uma espécie de inevitabilidade do seu destino, que de certa forma é um fardo; o xamã tradicional pode curar, mas também causar danos; ele não fez curso de xamanismo.

CONSIDERAÇÕES

Compartilhando o texto:

CONSIDERAÇÕES SOBRE PLANTAS DE PODER

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Acredita-se que há 3 milhões de anos atrás o homem se destacava de outros primatas, numa lenta jornada em busca de si mesmo. Neste período o cérebro triplicou o seu peso. Mas segundo a ciência foi há 500.000 anos que se formou o neocórtex, onde a consciência humana, que era nebulosa ganhava amais nitidez. O neocórtex está relacionado com o raciocínio abstrato. Nos últimos cem mil anos o processo se acelerou de forma significativa. O Homo Sapiens tornara-se senhor do planeta e já devia contar com algo próximo de uma consciência de si mesmo como indivíduo singular da sua espécie e um sistema rudimentar de comunicação querendo se articular enquanto linguagem.

Nos últimos trinta mil anos, que uma verdadeira revolução ocorreu no processo evolutivo.

Por essa época, os nossos ancestrais caçadores e coletores já tinham uma forma de organização solidária que lhes garantiam a sobrevivência frente ao ataque dos predadores e os rigores do meio ambiente.

Até hoje, pesquisadores e cientistas buscam uma boa resposta para essa aceleração evolucionária, que corresponde aos últimos preparativos para que a humanidade entrasse na cena da história. Alguns autores, entre eles Wasson e Mckenna, apresentam uma sólida argumentação, que eu também partilho nessa exposição, de que uma das causas principais da súbita irrupção da auto-consciência humana teria sido a simbiose do homem com o mundo vegetal e especificamente com os psicoativos.

Essa é a perspectiva poética e visionária que sempre se apresenta quando "consultamos" a inteligência e a memória que a Mente Vegetal guarda desses eventos. Por meio dessa tese podemos entender também, o cenário onde esses homens e seus conhecimentos sobre as plantas nutritivas, curativas e psicoativas, o que causou mudanças e respostas cada vez mais rápidas na sua estrutura neural, estado de consciência e comportamento.

No entanto, foi no final da última glaciação, que ocorreu há uns doze mil anos, que as condições se tornaram propícias para a difusão da agricultura, domesticação de animais e pastoreio. A intimidade com o manejo dessa última atividade trouxe um contato cada vez mais estreito com os fungos psilocíbicos associados ao esterco de gado. Floresceram a partir dessa época festas consagradas aos cogumelos sagrados, como parte dos cultos à fertilidade associados à Grande Deusa.

Vestígios arqueológicos da arte desse período, principalmente a partir do oitavo milênio a.C., expressam de forma literal ou estilizada, o uso cerimonial dos fungos em povos e culturas bastante distantes entre si. O que parece indicar a importância e a universalidade desses cultos na formação de uma espécie de pré-religião, primeira separação que o homem fez de uma "esfera sagrada" em oposição a um "mundo profano". Certas plantas e árvores, ou a natureza de um modo geral, eram revestidas de atributos divinos ou mesmo divinizados. Hoje estamos em condição de afirmar que esta postura não tinha nada de ingênua ou simplória, correspondendo sim à ação da psilocibina e outros agentes enteógenos e as conseqüências das visões dela decorrentes nos mitos, símbolos e arquétipos que se apresentavam à consciência da época.

Essas hierofanias vegetais foram portanto, cronologicamente, as mais antigas que se tem notícias. O que atesta que, por esse tempo, no limiar da história conhecida, já havia uma familiaridade com o tema do sagrado/vegetal, do Deus/Vegetal, que remonta a tempos ainda mais longínquos. Sem dúvida, este foi um dos principais substratos que mais tarde vieram a formar os diversos Cultos dos Mistérios da antiguidade e às grande religiões do mundo.Talvez o caso mais conhecido e também o mais eloqüente seja o do Soma.
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Essas influência das plantas enteógenas na experiência dos estados místicos associados a cultos agrários e de fertilidade, podem ser encontrados desde a Ásia, passando pela Europa, até o extremo do continente sul-americano. O que nos permite supor que elas foram, desde uma antigüidade ainda mais remota, o agente acelerador e o detonador desse autêntico "Big Bang" da consciência que ocorreu nos últimos trinta mil anos. Existe um certo consenso de que as triptaminas tenham sido esse enteógeno primordial, não só pela reconstrução e suposição histórica, como também e principalmente por causa da excelência e peculiaridade do êxtase ou "miração" triptamínica, cujas visões são inigualáveis em florescência, intensidade, conteúdo e principalmente na capacidade do Eu interagir no interior dos eventos que fazem parte desse estado de consciência cósmica.

A consagração dos insights das visões como sendo de origem divina, explica a reverência com que essas plantas eram tratadas. Mais maravilhoso ainda é essa oportunidade que a Mente Vegetal ofereceu à Mente Humana e continua oferecendo ainda hoje na forma da mesma revelação que foi enviada aos nossos longínquos antepassados. Isso porque, "revelação" é uma verdade sempre idêntica em si mesma, apesar de poder ser expressa por símbolos diversos dentro da psique humana. Ela é a mesma visão dos místicos e iniciados de todas as idades, o que varia é apenas a convicção e o juízo de valor que tiveram sob o que experimentaram. Isso fica claro, quando constatamos as semelhanças e pontos comuns dos relatos das experiências de êxtase nas mais diversas tradições.

Se no passado foram considerados bem-aventurados "aqueles que não viram e creram", maior prazer teremos nós quando pudermos enxergar tudo aquilo que a nossa fé sempre acreditou !


SERIAM OS DEUSES ALCALÓIDES ?

Alex Polari

Texto apresentado na " International Transpersonal Associations Annual Conference
"The Technologies of the Sacred"
Manaus - Amazonas - Brazil*

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I. INTRODUÇÃO

Queremos abordar aqui, através da pergunta título da nossa conferência, um pouco do papel das plantas psicoativas no processo evolucionário da consciência humana e do seu emprego desde a antigüidade como indutor dos estados expandidos ou alterados de consciência. Depois nos deteremos mais detalhadamente na questão da consciência xamânica e da descrição da "miração", estado particular de experiência mística e êxtase visionário que ocorre sob o efeito da bebida sacramental enteógena denominada SANTO DAIME (Ayahuasca, Yagé, Caapi, etc.) e que por suas peculiaridades, parecem ser comum apenas ao relato de experiências com os compostos triptamínicos. E, finalmente, considerar em que precisamente a proposta enteógena pode se constituir em um paradigma para uma nova consciência centrada no verdadeiro Self.

II. UMA BREVE TEOLOGIA DOS ENTEÓGENOS

Para buscarmos uma resposta para nossa pergunta devemos retroceder cerca de três milhões de anos quando o homem, destacando-se dos demais primatas superiores começava a sua lenta evolução rumo a consciência de si mesmo. Durante o transcorrer de todo este período, o cérebro triplicou o seu peso mas foi durante os últimos quinhentos mil anos que se formou o néo-córtex. Podemos supor a consciência desta época como sendo um imenso Id dominando um lento embrião do ego em formação. Antroposofícamente falando, as mônadas ou os princípios espirituais que estavam se encarnando nessa época na Terra, promovendo a vida e a evolução humana, ainda não estavam suficientemente ajustados aos corpos físicos desses primeiros seres humanos. Segundo Steiner, eles teriam uma consciência do plano espiritual e das auras dos seres e objetos do mundo material, mas não tinham uma percepção nítida e diferenciada dos mesmos. Isso só veio a acontecer quando houve o acoplamento definitivo entre os corpos físicos etérico do homem, quando do ambos passaram a coincidir. Nesse momento, a consciência humana teria deixado de ser uma "consciência de clarividência nebulosa" para ganhar mais nitidez na apreensão do mundo material.

Nos últimos cem mil anos o processo se acelerou de forma significativa. O Homo Sapiens tornara-se senhor do planeta e já devia contar com algo próximo de uma consciência de si mesmo como indivíduo singular da sua espécie e um sistema rudimentar de comunicação querendo se articular enquanto linguagem. Foi na última fase deste período, nos últimos trinta mil anos, que uma verdadeira revolução ocorreu no processo evolutivo. Por essa época, os nossos ancestrais caçadores e coletores já tinham uma forma de organização solidária que lhes garantiam a sobrevivência frente ao ataque dos predadores e os rigores do meio ambiente. Até hoje, pesquisadores e cientistas buscam uma boa resposta para essa aceleração evolucionária, que corresponde aos últimos preparativos para que a humanidade entrasse na cena da história. Alguns autores, entre eles Wasson e Mckenna, apresentam uma sólida argumentação, que eu também partilho nessa exposição, de que uma das causas principais da súbita irrupção da auto-consciência humana teria sido a simbiose do homem com o mundo vegetal e especificamente com os psicoativos. Essa é a perspectiva poética e visionária que sempre se apresenta quando "consultamos" a inteligência e a memória que a Mente Vegetal guarda desses eventos. Por meio dessa tese podemos entender também, o cenário onde as hordas mais adaptadas desses homídeos onívoros ampliavam de forma crescente sua dieta e seus conhecimentos sobre as plantas nutritivas, curativas e psicoativas, o que causou mudanças e respostas cada vez mais rápidas na sua estrutura neural, estados de consciência e comportamento.

Levi Strauss, comentando a obra de Wasson, analisa o mito da árvore do conhecimento e a história bíblica de Adão e Eva, comendo o fruto proibido, como a metáfora do contato do homem com o enteógeno primordial. Em outras palavras, esse seria o momento da mudança do estado indiferenciado de clarividência nebulosa para o de auto-consciência lúcida, o que trouxe como conseqüência a sua expulsão do Éden.

No entanto, foi no final da última glaciação, que ocorreu há uns doze mil anos, que as condições se tornaram propícias para a difusão da agricultura, domesticação de animais e pastoreio. A intimidade com o manejo dessa última atividade, trouxe um contato cada vez mais estreito com os fungos psilocíbicos associados ao esterco de gado. Floresceram a partir dessa época festas consagradas aos cogumelos sagrados, como parte dos cultos à fertilidade associados à Grande Deusa. Vestígios arqueológicos da arte desse período, principalmente a partir do oitavo milênio a.C., expressam de forma literal ou estilizada, o uso cerimonial dos fungos em povos e culturas bastantes distantes entre si. O que parece indicar a importância e a universalidade desses cultos na formação daquilo que M. Eliade define como as primeiras hierofanias vegetais, uma espécie de pré-religião, primeira separação que o homem fez de uma "esfera sagrada" em oposição a um "mundo profano". Certas plantas e árvores, ou a natureza de um modo geral, eram revestidas de atributos divinos ou mesmo divinizados. Hoje estamos em condição de afirmar que esta postura não tinha nada de ingênua ou simplória, correspondendo sim à ação da psilocibina e outros agentes enteógenos e as conseqüências das visões dela decorrentes nos mitos, símbolos e arquétipos que se apresentavam à consciência da época. Essas hierofanias vegetais foram portanto, cronologicamente, as mais antigas que se tem notícias. O que atesta que, por esse tempo, no limiar da história conhecida, já havia uma familiaridade com o tema do sagrado/vegetal, do Deus/Vegetal, que remonta a tempos ainda mais longínquos. Sem dúvida, este foi um dos principais substratos que mais tarde vieram a formar os diversos Cultos dos Mistérios da antiguidade e às grande religiões do mundo.

Talvez o caso mais conhecido e também o mais eloqüente seja o do Soma, que segundo os hinos do Rig-Veda era prensado e mesclado a leite para ser consumido em rituais e cerimônias dedicados ao Deus Indra. O Soma estava entronizado numa posição de destaque no Panteão Védico. É mesmo Haoma citado no Zed-Advesta, escrituras persas atribuídas a Zoroastro. O que nos permite estabelecer sua raiz ária e considerar que possa ter sido difundido pelas diversas ondas migratórias dos povos arianos que foram penetrando o Vale do Indo entre o segundo e o primeiro milênio a.C. É igualmente possível que com o passar do tempo, por dificuldades de suprimento ou de adaptação do Soma nas novas terras conquistadas, tenha havido uma planta substituta, já conhecida pelos povos drávidas que habitavam a região e cuja cultura se mesclou com a dos conquistadores. Já a Ioga e a Filosofia Sankhya seriam adições posteriores. Suas posturas corporais, métodos respiratórios e refinamento psicológico, enfatizavam a sadhana, as austeridades e a meditação como o novo método para alcançar o êxtase, o samadi, estado de consciência onde o Eu Átmico se funde no oceano de Braman. Experiência que certamente os antigos riskhis (sábios videntes que receberam a revelação dos Vedas) tiveram, embriagados pelo Soma.

Essas influência das plantas enteógenas na experiência dos estados místicos associados a cultos agrários e de fertilidade, podem ser encontrados desde a Ásia, passando pela Europa, até o extremo do continente sul-americano. O que nos permite supor que elas foram, desde uma antigüidade ainda mais remota, o agente acelerador e o detonador desse autêntico "Big Bang" da consciência que ocorreu nos últimos trinta mil anos. Existe um certo consenso de que as triptaminas tenham sido esse enteógeno primordial, não só pela reconstrução e suposição histórica, como também e principalmente por causa da excelência e peculiaridade do êxtase ou "miração" triptamínica, cujas visões são inigualáveis em florescência, intensidade, conteúdo e principalmente na capacidade do Eu interagir no interior dos eventos que fazem parte desse estado de consciência cósmica.

A consagração dos insights das visões como sendo de origem divina, explica a reverência com que essas plantas eram tratadas. O ego recém conquistado já podia transcender a si mesmo e travar contato com o Tu e com o Outro. Do respeito que nasceu do homem, com a fonte ao mesmo tempo vegetal e espiritual que lhe enviava aquela graça, aquela compreensão dele mesmo e do universo, nasceu a idéia de religiosidade, de se religar com a sua origem e pátria cósmica. Num certo sentido, religião é aquela ânsia de se relacionar corretamente com o Outro transcendente. Essa foi a aurora da consciência de si mesmo. No momento em que a consciência humana transcendeu a si mesmo e pode vislumbrar a consciência cósmica, o relâmpago precipitou-se no abismo e a Coroa do homem iluminou-se! Por isso os alcalóides, principalmente os triptamínicos, são fortes candidatos a serem protodeuses. Sob seus auspícios, foi feita a primeira grande conexão entre o mundo da jovem consciência humana recém desperta e o mundo divino e eterno, entre o sagrado e o profano. O primeiro ancestral ou herói mítico, de Gilgamesh até Viracocha, presentes em tantas cosmogonias de culturas tão distantes entre si, são os ecos e as sombras dos tempos dos titãs. Onde esses semi-Deuses, metade homem e metade Deus, foram iniciados por instrutores de uma ordem de consciência superior - vale dizer portanto divinos - a fim de trazerem a luz, o fogo de Prometeu para repartir com os seus irmãos.

Como a maior evidência arqueológica das contribuições realizadas, quando na passagem dos "Deuses Alcalóides" pelos labirintos da consciência humana, está a presença da serotonina, neuro-transmissor cerebral encarregado de estimular os receptores dos neurônios e que tem praticamente a mesma estrutura molecular da DMT (dimetil-triptamina) alcalóide presente nas várias plantas enteógenas usadas pelos homens desde a antigüidade.

Mais maravilhoso ainda é essa oportunidade que a Mente Vegetal ofereceu à Mente Humana e continua oferecendo ainda hoje na forma da mesma revelação que foi enviada aos nossos longínquos antepassados. Isso porque, "revelação" é uma verdade sempre idêntica em si mesma, apesar de poder ser expressa por símbolos diversos dentro da psique humana. Ela é a mesma visão dos místicos e iniciados de todas as idades, o que varia é apenas a convicção e o juízo de valor que tiveram sob o que experimentaram. Isso fica claro, quando constatamos as semelhanças e pontos comuns dos relatos das experiências de êxtase nas mais diversas tradições. Se no passado foram considerados bem-aventurados "aqueles que não viram e creram", maior prazer teremos nós quando pudermos enxergar tudo aquilo que a nossa fé sempre acreditou !

IV - CONSCIÊNCIA XAMÂNICA E "MIRAÇÃO"

Pode-se dizer que o xamanismo é o sistema de conhecimento espiritual mais arcaico que se conhece. E que, desde o começo, sua prática sempre esteve associada ao uso de enteógenos. Além de participar na maior parte de todas essas sensações, próprias dos demais estados expandidos de consciência, a consciência xamânica ou o estado de consciência xamânico também tem suas peculiaridades. A sua própria e já clássica definição como sendo "a arte do êxtase", já pressupõe que o xamã detém um conhecimento específico de operar no êxtase e esta é a sua maior arte. Através dela, ele se aproxima de forma consciente até o máximo limiar possível da aniquilação. É este o vôo do xamã: atingir a realidade além da nossa percepção usual, mantendo sempre aberta as portas de acesso ao mundo espiritual. Porém o mais importante que queremos destacar dentro do xamanismo é a vivência, a mobilidade de atuação do Eu dentro do transe. O Eu se torna o veículo divino, a carruagem dos cabalistas (Merkabath) que alça vôo em busca dos palácios celestes. Mas ele não se limita em contemplar seus átrios e fachadas reluzentes. Ele caminha por seus labirintos, túneis secretos, ele procura conhecer o que se passa em cada um de seus aposentos e câmaras. Esse é o roteiro da "miração", um estado de consciência místico-xamânico, obtido com a ingestão ritual do Santo Daime, que gostaríamos de nos deter mais minuciosamente.

A "miração" é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime pelo Mestre Irineu para designar o estado visionário que a bebida produz. O verbo "mirar" corresponde a olhar, contemplar. Dele deriva-se o substantivo "mirante", que é um local alto e isolado onde se pode descortinar uma vasta paisagem. A palavra "miração" une contemplação mais ação (mira+ação), o que expressa de maneira clara que o termo foi cunhado por pessoas que eram plenamente conscientes da viagem do Eu no interior da experiência visionária, característica do êxtase xamânico. E que é simbolizado pela viagem da águia voando em direção ao sol. Sem dúvida existe uma grande diferença entre uma iniciação quietista - que prepara o neófito através do silêncio e da meditação - e a iniciação xamãnica que o convida para ser protagonista totalmente responsável pelo seu desdobramento astral e vôo espiritual. Nele, somos convidados a participar de um filme em que as cenas que se desenrolam na tela, dependem, em última instância, do que está ocorrendo no interior da nossa consciência. Em outras palavras: só conseguiremos salvar a donzela do "filme astral" das garras do vilão, se a nossa disposição para tanto for tão verdadeira como a nossa capacidade de realizá-la. Temos que estar concentrados no nosso objetivo, mobilizando desde o nosso interior a coragem e a sabedoria necessária para atravessar as diversas provas do percurso iniciático. Caso contrário, a "narrativa visionária" sai do nosso controle podendo acontecer um desfecho negativo e uma interrupção do vôo do Eu rumo ao êxtase. Estamos querendo dizer que dentro da miração o estado de ação e contemplação são como as faces complementares de uma mesma moeda. A mente, antes de dar partida ao fluxo de imagem da miração, experimenta várias outras fases de preparação. Tem que distinguir a genuína experiência visionária da imaginação pura e simples, dos jogos mentais de projeção e visualização. As imagens visionárias, os eventos visionários que envolvem o nosso Eu dentro da "miração" são de ordem psico-noética, isso é, ocorrências numa ordem de realidade contígua ao mundo espiritual. O que nos permite afirmar que a "miração" ativa os nossos corpos sutis e os libera par agir dentro do cenário feérico e numinoso da realidade xamãnica.

Esse nível de consciência atingido pela "miração" vem quase sempre acompanhado de uma voz interior que guia, acompanha ou dirige o processo. Esta é, ao meu ver, a faceta mais incomum e maravilhosa da "miração" do Daime. Durante o seu transcurso nossa consciência participa dos fenômenos psíquicos, noéticos e espirituais, através dos nossos corpos sutis. Através deles, o nosso Eu comparece nos momentos decisivos e brevíssimos onde se decide sobre o nosso destino em meio às vagas probabilidades do mar de indeterminações quânticas. Dessa forma, imprimimos movimento ao que é imutável e eterno, manifestamos vida e fecundamos a matéria por seu intermédio. Ajudamos a tecer a trama do próprio destino, a complexa textura dos eventos geradores da realidade e da vida. Isso significa que, no êxtase da "miração", estamos travando um diálogo com Deus, estamos trabalhando com Ele, estamos sendo convocados para essa grande responsabilidade de sermos co-criadores do universo. E sem dúvida, só um destino com tal nobreza justifica o plano da criação divina, as provas da evolução, o porquê da queda luciférica, a entrada em cena do mal e a nossa tarefa de convertê-lo e reunificá-lo com a verdade até o final dos tempos. Receber essa missão é o cerne da Revelação em todos os tempos. Enquanto que o cerne da iniciação é adquirir a força de vontade suficiente para executar tudo o que foi revelado na miração. Anteriormente nos referimos que a falta de mérito e de coragem durante o vôo xamãnico poderia desestabilizar a "miração", ou o que é pior, fazer com que o fio narrativo da experiência visionária tenda para um desfecho desfavorável. Nesses reinos espirituais de deslumbrante beleza, parece que impera uma terrível justiça. O homem não está programado para ser perfeito. Ele tem que biológica, psicológica, social, moral e espiritualmente falando, escolher ser perfeito. Isso se faz através da faca de dois gumes do seu livre arbítrio. Graças a ele, o homem por um lado supera em estatura os deuses, devas e querubins, enquanto que por outro, se torna presa fácil da ambivalência de sua frágil inconsistência humana. O Budismo Tibetano se refere a esta eclosão súbita da ruptura do ego frente ao sublime, como sendo o momento em que, dentro da meditação, o meditador, sob a inspiração da Dakini (aspecto feminino do Buda), enfrenta as entidades terrificantes que se postam diante do Nirvana. Quando o ego consegue se apossar do Eu, a consciência já expandida se retrai novamente. Nesses momentos, as visões podem se tornar negativas, até mesmo terrificantes e isso está associado aos efeitos purgativos e miméticos da bebida enteógena indutora da "miração". Reconhecido porém o impostor, é a hora da consciência, à semelhança da esfinge, lançar o seu desafio: Decifra-me ou te devoro! Somos cobrados a apresentar um desempenho compatível com a nossa presunção de alcançar a imortalidade. Se nessa hora não tivermos verdade para apresentar, o monstro elemental por nós mesmo criado, nos come. O Poder nos cobra sempre a nossa transformação para podermos continuar no caminho. Pois sem a verdade no ser, o caminho se torna perigoso para o impostor.

É o que Sebastião Mota, um dos principais "padrinhos" do Daime chama da necessidade de "ser em vez de parecer". Ser verdadeiro é pois a ciência para entramos totalmente seguros nos estados elevados de consciência e deles conseguirmos sair, trazendo no retorno novas aquisições para continuarmos a Busca. Nos níveis sutis, a verdade atrai a verdade. O ser manifestado enquanto verdade é a matéria prima da criação. Quanto mais estamos na verdade, mais se apresenta a nós na miração aquilo que precisamos ser. E Deus nos usa como peças do seu quebra-cabeças divino, nos inspira amor e nos torna cúmplices da sua obra. A verdade do ser é exata, nela nada falta nem sobra. Não há lugar para condicionamentos mentais, hábitos viciosos disfarçados de caráter, máscaras ou papéis sociais. Se o nosso coração nos acusa, é porque não temos verdade. E sempre que esta falta de verdade interromper a nossa "miração", desestabilizando-a, devemos aproveitar o seu momento sagrado para pedir ao Poder que nos conceda a chance de nossa transformação. O sofrimento e o desconforto, que às vezes essa disciplina nos acarreta, depois sempre é sentida como benéfica. Eis a autêntica terapia xamânica, uma terapia de conversão à verdade, onde nos afastamos das ilusões e das samsaras nos tornando cada vez mais conscientes do nobre script que Deus nos reservou.

Tentamos aqui, violando o item da inefabilidade da experiência mística, expressar de alguma maneira com as palavras, essa sensação extraordinária que é trabalharmos projetados em nossos corpos sutis nas oficinas seráficas da criação divina. Isso ocorre, como já vimos, mediante à atuação do Eu Superior no interior das imagens visionárias, como se a "miração" fosse um jogo interativo de "realidade virtual espiritual". Para que esse processo traga benefícios que possam ser incorporados ao ser, exige-se deste uma postura passiva-receptiva e um padrão mental positivo e elevado. Dessa forma é que a barquinha da consciência pode navegar nas ondas do mar sagrado, que é a Mente, e se manter com as velas enfunadas em meio ao mau tempo e aos maus pensamentos.

Para finalizar esse ponto, gostaríamos de nos referir sucintamente a duas questões conexas à nossa abordagem de estado de consciência xamânico da "miração". Trata-se do carma e da mediunidade, aspectos ligados ao tema da cura xamânica. Num certo sentido, a cura espiritual já é a própria imersão do Eu nesses estados elevados de consciência, fazendo com que ele amplie a sua visão interna sobre as causas dos desequilíbrios que geram as doenças. Nessas vivências visionárias do Eu no interior da "miração" também ocorre dele se lembrar de fatos relativos às suas vidas passadas, facilitando a compreensão de padrões cármicos que precisam ser interrompidos nessa encarnação.

Já o fenômeno da mediunidade, não se resume apenas ao transe e à incorporação. Num outro sentido, ele trata também da miríades de pequenos "eus" que orbitam em torno do nosso Eu central. E que à primeira distração nossa, entram por dentro da casa e assumem o lugar do dono. Em alguns estágios da "miração" podemos perceber esses "eus" como seres. Podemos perceber que cada pensamento que flui na nossa mente é um ser e com isso, aprendemos a melhor ajustar o nosso dial mediúnico para captar apenas a freqüência dos seres que nos interessam. Mas nem sempre podemos escolher o que chega à nossa mente. Portanto esse canal mediúnico também nos ajuda a auto-doutrinar os maus pensamentos e afastar as más influências psíquicas e espirituais que podem se tornar nossos futuros obsessores.

Tentamos expressar um pouco o nosso entendimento da "miração" compreendido como um estado de percepção mística que guarda várias semelhanças com aquilo que denominamos consciência cósmica. Escolhemos um aspecto da "miração", a saber o da relação interativa do Eu com as visões, característica da tradição xamânica. Isso porque, a "miração" é ao mesmo tempo uma realidade visionária em movimento e um estado de contemplação extático. À maneira do samadi, comporta vários estágios, graus e possibilidades de realização. Apresenta planos e panoramas imensos e às vezes passa tempo trabalhando apenas alguns fotogramas. Sua meta suprema é a realização do Eu superior do homem. Apesar da ajuda inestimável das plantas sagradas para a sua consecução, o trabalho espiritual da "miração" nunca termina. Continua no dia-a-dia através do esforço de se manter coerente com os seus ensinos.

Algumas vezes, através da "miração", temos uma percepção clara da realidade espiritual da vida além do corpo. Penetramos assim no mistério que a nossa ignorância chama de morte, mas que não passa de uma transição para um outro estado de consciência. Voltar dessa experiência da "morte" com conhecimento do que isso seja, significa ter renascido e recebido o mais alto grau de iniciação, independente do credo que cada um professe.

Por isso consagramos o ser divino presente nessas plantas amigas e professoras do homem e a "miração" que ela nos fornece. Mesmo que o seu uso responsável seja sempre benéfico, é porém dentro de um contexto ritual e religioso, que sentimos uma maior segurança para a utilização profilática e terapêutica dos enteógenos.

V. O CONTEXTO RITUAL DA MIRAÇÃO

No movimento religioso do Santo Daime existem diversas modalidades de ritual: concentração, cura, feitio da bebida, estudo e desenvolvimento mediúnico e as festas dos hinários, que é a forma que nos deteremos mais aqui.

No hinário, dentro de um amplo salão na forma de uma estrela de seis pontas, se perfilam os batalhões masculino e feminino, e dos rapazes e das moças, cada um com seu setor de base. Os neófitos, idosos, senhoras e crianças, ficam sentados mais ao fundo. O sacramento enteógeno é distribuído, todos entram em fila e começa o bailado ao som dos hinos, que são cantos que os mestres e outros membros mais avançados da irmandade recebem por ocasião da miração, sendo desta forma considerados ensinos divinos, mensagens do poder do Daime para todos e não apenas para quem o recebeu. Todos cantam e bailam dentro de um retângulo de aproximadamente 80 cm. de comprimento. Cada um porta um maracá para acompanhar o ritmo do bailado. A perfeição do trabalho está na harmonia da música, no ritmo e no canto. A jornada começa no entardecer da data marcada e vai até o nascer do dia da manhã seguinte. Todo este dispositivo, predispõe seus participantes a terem uma atitude receptiva e segura em relação aos efeitos da bebida sacramental. Isto ocorre poucos minutos após sua ingestão. A consciência passa a perceber pessoas e objetos como portadoras de uma aura de leve irridescência. Logo depois sentimos uma pressão, o pulsar da energia dentro e fora do corpo, propagando-se em ondas concêntricas como uma pedra lançada na superfície de um lago. É a chegada daquilo que chamamos "Força", a propriedade ativa do cipó, componente masculino da bebida cerimonial. O bailado e o ritmo dos maracás condensam cada vez mais energia, se constituindo também em indutores auxiliares do transe xamânico. É nesse ponto que a luz costuma chegar. A luz, o princípio feminino da folha, quando se casa com a força, o princípio masculino do cipó, gera a miração. Espoucam luzes, ouvimos zumbidos eletrônicos e o barulho de matracas. Suavemente ela se instala e nos transporta para o reino das visões. Progressivamente o nível de consciência se eleva para patamares mais elevados, tanto individual como grupalmente. Esse reservatório comum de energia psíquica e espiritual, denominamos de "corrente", que é quem sustenta o vôo individual de cada um na miração e a beleza do conjunto. Quando isso ocorre, nosso campo visual se altera, aparecem luzes, imagens, sensações, lembranças, insights e visões. A intensidade do momento interior da viagem de cada um se expressa na força da corrente. Qualquer piscar de olhos altera o fluxo das imagens. É como se em nossa mente, um diafragma regulasse a entrada da luz e um zoom nos aproximasse dos ângulos mais desconhecidos do universo.

Dependendo do desenrolar do ritual, a corrente facilita ou dificulta a miração, sendo possível em determinados momentos, uma vivência coletiva da mesma visão, o que se constitui o ponto culminante do trabalho. Durante esse longo percurso, o eu se desdobra no astral, evoca e soluciona alguma situação cármica pendente, canaliza a energia para realizar uma cura nele mesmo ou em outro, obtém insights reveladores e libertadores para seus conflitos e é tomado por toda sorte de inefáveis estados de percepção mística, compreensão do universo, amor pelos seus irmãos, premonições e sincronicidades. Ao final de todos esses estágios, encontra-se sempre aberto à possibilidade do êxtase total e beatífico. Tudo isso, é bom que se diga, se processa em íntima conexão com a música, o canto, a dança e o ritmo dos maracás. A barquinha singra as ondas do mar sagrado da mente embalada pelo hinos que guiam a nossa travessia. Durante esta, os hinos tem o poder de responder a todas as questões que a nossa consciência coloca no exato momento em que elas são formuladas.

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